Um acidente que pode acontecer a qualquer um
Sabem aqueles dias em que pressentem que alguma coisa vai acontecer? Aqueles dias em que acordamos estranhos, em que não dormimos bem, em que o coração não está calmo, porém sem qualquer motivo aparente? Ontem foi um desses dias em que aquele acidente que achamos que só acontece aos outros, aconteceu a nós!
Felizmente, e embora a forma estranha como tinha acordado, eu mantive a minha rotina. Acordei cedo, despachei os miúdos, fui ao ginásio – e treinei a sério – à saída, encontrei uma amiga e, contrariamente ao que costumo fazer (pois ando sempre a correr), sentei-me com ela a conversar e ficamos ali mais de uma hora, sem dar conta do tempo passar. E regressava a casa mais feliz e mais leve. Estava descontraída.
O Vicente tinha ficado em casa, depois de duas noites a fazer febre. A Laura acordou da sesta e não estava bem-disposta. Foram ao parque com a avó e eu, finalmente, consegui o tempo que precisava para acabar um texto que me tinha comprometido a enviar ontem. Não estava concentrada, mas estava em silencio até que o telefone toca e eu só ouvi a minha filha aos gritos do outro lado. Tiro a toalha do banho do cabelo e calço a primeira coisa que encontro. Corro com a esperança que, afinal, não tivesse sido nada grave. Tarde de mais, havia sangue, gelo, a Laura aos gritos. Um acidente, daqueles que acontecem, tinham acontecido à minha filha, tinha-me acontecido a mim. Uma cena que parecia de um filme e não da vida real. Minha rica menina! O baloiço do parque onde ela brinca todos os dias tinha-se partido. Um acidente que podia acontecer a qualquer pessoa e que aconteceu a ela. Não havia forma de adivinhar ou sequer de evitar.
Acontece, dirão vocês, e eu irei concordar. Afinal, levante a mão quem não tem uma cicatriz de infância! Eu tenho, na cabeça, felizmente escondida. Contudo, o duro desta história toda é que, sendo mãe, eu não queria que a minha filha as tivesse. Não queria ver a minha menina assim, não queria ter esta aflição dentro de mim que só uma mãe sabe o que é! Caramba! E ela, que estava bem e que dormia, e eu que não consegui pregar olho, que dormi junto dela, deles para ter a certeza que estavam bem. Foi um azar. Acontece. São as dores do crescimento. Fazem parte vida e a grande maioria nem sequer lhes deixa memória.
Mas sabem, lá pela altura da minha adolescência, a minha mãe dizia-me uma coisa que, diga-se de passagem, me irritava bastante. Dizia que “uma mãe sofre mais do que um filho, mas que eu só ia entender isso quando fosse mãe!”. Ora… bem-dito e bem-feito! Cá estou eu, que não preguei olho a noite inteira, com a imagem do queixo aberto na minha cabeça e com vontade de não a largar mais.
Azares não acontecem só aos outros. Todos os cuidados são poucos, mas há uma percentagem que coisas que podem acontecer e que nós não controlamos. Vale referir aqui o bom serviço e a atenção que nos foram prestados, tanto à Laura quanto a mim, no serviço de urgência do Hospital dos Lusíadas. Um cirurgião atencioso e uma enfermeira muito querida. Felizmente que a sutura foi feita não com os tradicionais pontos, mas sim com uma cola, o que tornou toda aquela experiência muito menos traumática para ambas. Não teve dor e portou-se à altura da sua valentia. Ria-se e conversava e eu chorava, com a camisola cheia de sangue e um cabelo que secou sem ser penteado, enfiado num carrapito mal feito.
Lembrei-me do meu pai, quando um dia agarrou em mim, mesmo de pijama, e levou-me para o hospital porque tinha engolido uma espinha num almoço de domingo em casa. E talvez, por isso, tenha sonhado com ele esta noite. Daquela vez resolveu-se bebendo água com açúcar, mas a preocupação e o olhar eram os mesmos que eu, agora mãe, tinha e sentia.
A Laurinha agradece todo o carinho e a mãe fica de coração cheio por perceber que desse lado estão pessoas reais que sentem aquilo que eu sinto, que se importam e que tiram uns minutos do seu tempo para perguntar se está tudo bem, para desejar as melhoras, para partilhar algum acidente que já tiverem com os seus filhos e até para partilhar as histórias das suas próprias cicatrizes. Não me esqueço! <3 Obrigada!