Não obstante o amor que sinto pela minha família…
Não obstante o amor que sinto pela minha família, sinto a urgência do tempo para mim, do silêncio e até de estar sozinha. Têm sido dois longos meses com duas crianças em casa, sem actividades fora de casa, porque ainda era cedo devido à barreira da língua, com uma casa nova e toda uma mudança a meu cargo, as viagens do meu marido e o drama do cancro que teve a força de um tsunami nas nossas vidas.
De repente senti-me a cair num buraco escuro, deixando-me absorver pelos problemas inerentes a tudo. Quase que o lado bom me passava ao lado. Quase que o sentido das minhas escolhas foi colocado em causa. Quase que entrei numa espiral de revolta que, ainda que conveniente, no final, me conduz à encruzilhada da impotência face a esta doença que é o cancro.
Na última semana, deixei que este sentimento de fúria se apoderasse de mim e eu tentando controlar, concluo que o resultado é ainda pior. Não foi fácil assistir à distância a coisas marcantes, como o momento em que se perde o cabelo ou que se sentem os primeiros efeitos reais da doença. O abraço não chega até lá, os beijos também não e o que são as palavras face a tudo isto? O tal pragmatismo que algumas pessoas tentam mostrar-me e me tentam ensinar, serve de muito pouco quando o assunto são emoções, sentimentos e uma mudança abrupta na forma como visualizávamos a nossa vida no futuro.
Depois, estes dois longos meses com crianças em casa, distraídos com as poucas actividades e programas que vamos fazendo, não fazem bem nem a eles nem a mim. Porque ou me dedico a eles a 100% e coloco em stand-by o meu trabalho e arrisco, muito provavelmente, começar tudo do zero; ou tento conciliar tudo e, enfim, tentar que cada umas das partes seja satisfeita. Escolhi a segunda opção com um grau de exigência acrescido para mim e para a minha capacidade mental de fazer tudo.
Por outro lado, vê-los felizes, progressivamente mais integrados na rotina da sua nova vida, familiarizados com a língua francesa, pelo menos para não ser completamente estranho para eles quando chegar o primeiro dia de aulas, traz-me serenidade e ajuda-me a acalmar o coração. Afinal, é esta a experiência que lhes queremos dar para a vida e, de alguma forma, ser um “bonús” para o futuro deles e para a pessoa adulta que eles serão no futuro.
E eu… continuo um ser em constante mudança e adaptação, por vezes, imatura para a fasquia das nossas escolhas e exigências da vida, mas crente que o nosso instinto é o nosso melhor conselheiro. Sei que a tranquilidade que ia ter é agora uma utopia e que vou viver em permanente sobressalto e inquietude. Vou querer estar em dois lados ao mesmo tempo e isso (ainda) é impossível.
Faço-me perguntas a mim mesma para as quais ainda não tenho respostas e, se calhar, nem vou ter para todas. Distraio a mente no ginásio, nessa rotina que, pelo menos, é saudável e acaba por fazer-me bem a vários níveis. Arrumo a casa, numa espécie de organização de fora para dentro e bem que a casa precisa nesta vivência a quatro praticamente em permanência.
Aliás, já perdi a conta das vezes que cozinho, que vou ao supermercado, que faço refeições e refeições entre as refeições, que desespero na hora de sair de casa, na hora de dar banho e quando sou surpreendida com as desarrumações de to-dos os brinquedos to-dos os dias em to-do o lado.
A minha cabeça começa a ficar cheia e depois lá consigo encontrar algum equilíbrio, quando para tudo para organizar tu-do!
Ando a rumar contra a minha maré, mas não há alternativa! E uma consequência que teve apenas uma dificuldade acrescida da qual ninguém estava à espera. Acho que não devo querer abraçar tudo de uma vez, acho que não me devo deixar ficar no medo de perder e pensar no que vou ganhar com o tempo e com muitas doses de paciência.
Contudo, não obstante o amor que sinto pela minha família, é preciso reconhecer e aceitar que preciso de tempo sozinha, que preciso cuidar das minhas emoções e do meu equilíbrio. Só assim, conseguirei ter todo este amor e esta capacidade de abraçar a minha família em todas as mudanças pelas quais temos passado e de cuidar dela desta forma tão dedicada e quase exclusiva. Não obstante o amor que sinto pela minha família e sem culpa!